Talvez a grande questão de cada um na vida (talvez não de todos, mas se você assinou essa newsletter provavelmente é a sua) seja algo como: como a gente faz para sermos quem somos? Nenhuma originalidade minha nessa constatação, é claro. Desde que a filosofia, a psicologia e as ciências humanas existem, há muita gente quebrando a cabeça nessa questão. Bom, até agora ninguém a resolveu.
A novidade que a psicanálise traz (fazendo derreter esse blá blá blá dos discursos de autoconhecimento), é de que não há um “eu” prontinho, ali parado, esperando para ser encontrado, mas sim de que a vida acontece no próprio ato de viver. E o eu não é mais do que um lugar onde interpreta-se o tempo e seus efeitos em nós. Freud não disse isso, mas suponho que ele concordaria comigo.
Aliás, eu poderia dizer aqui que Lacan citou Rimbaud dizendo que “o eu é um outro”, poderia dizer que Freud dizia que o eu não é senhor em sua própria casa. E eu digo, ah como digo, não só digo como repito, já que essas são citações que eu recorrentemente faço quando me convidam para falar algo. Mas o que mais me interessa, depois de ler algo, ainda que eu leia esse algo tantas vezes a ponto de decorá-lo, é: o que eu posso dizer de outra maneira.
Vamos lá, eu não sou nenhuma gênia e provavelmente você que me lê também não. É provável que uma ou outra pessoa que esteja lendo esse texto seja, se bem que eu nem sei o que seria uma pessoa exatamente gênia, seja lá o que isso signifique. Então, toda vez que alguém diz que INVENTOU um método de fazer algo, dou dez passinhos para trás. Sério, duzentos mil anos de homo sapiens, mais de 8 bilhões de pessoas no mundo – e justamente essa pessoa – inventou algo? Vamos com calma. Até porque, geralmente quem diz ter inventado algo, geralmente sequer referencia suas fontes, inspirações ou referências. Em geral, se trata de um produto a ser vendido. (Nada contra quem vende algo, eu mesma sou uma vendedora dos meus próprios livros, há quem diga que faço publicidade da psicanálise – e eu até concordo.)
Nessa lógica precariamente binária, a gente fica entre: de um lado achar que não é ninguém no mundo para falar em nome próprio e ter até mesmo dificuldade de estudar e tomar posse de algum saber – e de outro se achar a última bolacha do pacote (ou nem se achar, mas fingir se achar, o que talvez seja ainda pior). E estou dizendo isso tudo para marcar: que grande dificuldade temos de achar um caminho que nos seja mais original!
Não digo de um caminho absolutamente novo, mas de um caminho que façamos ao caminhar, não sem algumas pistas do outro, mas também que não seja à sombra de alguém. (E para fazer a devida referência aqui, tem um poema do poeta Antonio Machado que diz isso lindamente – vou colocar no final da news).
Que grande dificuldade temos de dizer nosso ponto de vista sem que isso se transforme em uma tentativa de convencer o outro de que ele está errado, porque afinal de contas, nessa binaridade-blé, não há como duas pessoas terem pontos de vista diferentes e ambas estarem certas.
Como somos desengonçados no uso das palavras, repetimos modos de dizer, frases, parágrafos prontos para supostamente ganhar um lugar no imaginário do outro – ao custo de, tantas vezes, nos perdermos de nós mesmos.
E que maravilha é quando encontramos um interlocutor que, por falar mais por si e menos pelos outros, nos possibilita também fazermos o mesmo? Não estou dizendo em falar necessariamente de nossas fragilidades ou vulnerabilidades, palavras essas que estão tão na moda e seguem cada vez mais vazias de sentido. Também não estou dizendo de falar alguma coisa nova, que ninguém ainda tenha falado. Mas estou falando apenas de: falar a partir de si - considerando que cada um de nós é multidão. Falar a partir do vazio que nos constitui, a partir dos desencontros consigo mesmo, a partir do lugar partido em nós.
Felizmente, meu ofício enquanto psicanalista me permite trabalhar ouvindo essas pessoas, e às vezes até falando algo dessas questões que estou dividindo aqui em meu trabalho como professora e também "faladora onde me convidam" (leia-se por "faladora onde me convidam": minha forma de dizer algo parecido com palestrante sem cair nesse clichê).
Mas fico pensando... e quem passa a maior parte do tempo trabalhando com pessoas que ficam pagando de inteironas....? Gente, como é que vocês aguentam?
Escrever é, para mim, e ainda mais aqui, constantemente me encontrar com algum vazio em mim, que me permita dizer algo de novo – não para o outro, mas para mim mesma. E ainda que seja a mesma coisa de sempre, enquanto a coisa estiver dentro do prazo de validade, ela será nova.
Como já bem disse o super Fernando Pessoa:
“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”
Há quem esteja com medo da inteligência artificial ganhar espaços humanos, mas confesso para vocês que a minha preocupação tem sido avessa: como não nos tornarmos uma inteligência artificial? Porque eu não sei vocês, mas eu vejo projetos de A.I. e “chats GPTs” ambulantes em quase todas as partes.
O poema, gente!
Caminhante, não há caminho
Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar
Nunca persegui a glória
nem deixei na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão
Gosto de vê-las pintar-se
de sol e graná, voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se…
Nunca persegui a glória
Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
“Caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Ao andar faz-se caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a estrada que nunca
se há de voltar a pisar
Caminhante não há caminho,
senão rastros no mar…
Há algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
ouviu-se a voz de um poeta gritar
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso…
Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se viram-no chorar
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso…
Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um estranho.
Quando de nada nos serve rezar.
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso.
Para quem está esperando notícias do Clube de Palavras: gente, vai sair. É que o meu grupo de estudos do Lendo Freud hoje está me demandando mais trabalho do que eu supus e preciso ser fiel à minha causa maior na vida, que é não me tornar uma desinteligência artificial, então peço que aguardem mais um pouquinho 💛
Semana que vem terá lançamento no Rio, é só chegar.
Saiu a segunda parte da minha conversa com a Marcela Ceribelli no videocast do Bom dia obvious ;)
Vou levar esse trecho comigo pra refletir “o eu não é mais do que um lugar onde interpreta-se o tempo e seus efeitos em nós.”
Como é bom ler o que escreve, como me encontro em sua escrita!