Enquanto eu puder escrever não estarei sozinha, ainda que só possa escrever à condição de acessar alguma solidão em mim.
A escrita não me é uma garantia, no entanto. Imagino ser completamente possível, em algum momento, que não queira ou não tenha o que escrever - e então experimente uma solidão terrível, a do tipo do abandono. Talvez esse seja o abandono que mais me amedronte, o de mim mesma pela via da escrita. Confesso, no entanto, que esse amedrontamento eu não experimento no corpo todo, mas apenas no pensamento. E quando sinto algo apenas na esfera que fica presa ao meu pescoço, confio pouco. Saber só com a cabeça é pouco, o cérebro é uma fábrica de nos enganar.
Eu não tenho "precisado" escrever, assim, no sentido de cumprir prazos e entregar textos que algum outro pediu, contratou, encomendou, demandou. Mas me lembro que quando escrever era um imperativo em minha vida, especialmente no tempo em que escrevia minha tese de doutorado que, com frequência, ao travar na escrita, ler Freud era algo que me entusiasmava a escrever. Mas se eu estivesse com preguiça ou anestesiada o suficiente para nem mesmo assim escrever, então, eu apelava e lia Clarice Lispector, em especial, seu livro de crônicas intitulado "A descoberta do mundo".
Nunquinha, jamais me aconteceu de ler algo desse livro e não ser acordada por uma necessidade de escrita. Esse livro é uma espécie de bíblia da literatura para mim. Não sou religiosa, mas sei que há pessoas que, ao se angustiarem com uma questão, com algo da vida, abrem o livro da Bíblia em qualquer página e recebem aquilo que leem como uma mensagem, sentem as palavras como sendo endereçadas a elas para aquele momento, em especial. Tenho uma relação assim com esse livro da Clarice, embora saiba que Clarice falasse com ninguém mais do que ela mesma e não comigo. Embora o que eu leio de seus textos não me diga respeito a como devo tratar minha filha, como decidir coisas do meu trabalho ou como falar algo difícil com meu marido, ler Clarice é escutar um sopro no ouvido que diz ao meu corpo todo "escreva", tá aqui, ó. (Insira aqui uma onomatopeia de sopro)
Esses dias estive na Colômbia para lançar meu livro amarelinho por lá. Nessa, acabei por dar 4 entrevistas. Numa delas, o jornalista me perguntou algo novo, que nunca ninguém tinha me perguntado, nem mesmo eu. A pergunta foi algo como "daqui a 4 ou 5 décadas, quando alguém olhar sua foto (e apontou minha imagem na orelha do livro), o que espera que as pessoas pensem?"
Me surpreendi, primeiro porque acho que não me importa o que vão pensar de mim num tempo que entendi que era o suficiente para que eu estivesse morta (embora eu queira viver muito), mas soaria rude dizer que não me importo, ou ao menos, soaria rude em portunhol, que era a língua na qual estava "hablando"; então, pulou da minha boca algo como "esta foi uma mulher que escreveu o que quis". O jornalista ficou em silêncio, provavelmente aguardando um complemento, eu me mantive em silêncio e talvez tenha sorrido indicando o fim de minha fala, mas estou contando isso para vocês porque gostei do que eu disse.
É certo que falei menos sobre o que os outros vão pensar e mais sobre o que eu gostaria de pensar sobre mim. É certo também que ficou num tom de lápide: "aqui jas uma mulher que escreveu o que quis". E isso, embora possa parecer pouco para alguns, embora possa ter frustrado o jornalista, embora pareça óbvio que cada um escreva o que quer, para mim, foi surpreendente.
Assim como o processo de fazer análise costuma levar a uma descoberta muito inovadora na forma de pensar, assim como pensar falando para alguém (o analista) nos leva a lugares muito mais originais em nós do que ficarmos pensando a sós em nossas cabeças, também escrever é uma forma de pensar com algo no corpo para além da cabeça.
Escrever é pensar com as mãos, com os dedos, é pensar, no mínimo, com o indicador direito, que é como estou escrevendo esse texto no celular dentro do avião, voltando da Colômbia, aliás.
Escrevendo, sinto lugares novos no meu corpo e na minha vida.
Clarice serve como uma analista da escrita para mim. Ela não está me lendo/ouvindo, não faz intervenções, mas aquilo que escrevo tem muitas vezes alguma relação com a imensidão daquilo que descubro com ela a cada vez: que se pode escrever sobre o nada. Que escrever sobre ele é fazê-lo virar algo.
Escrevo para (me) fazer algo.
Essa semana comecei a decidir com a editora Planeta os detalhes da capa do livro "A corda que sai do útero". Pois é, o "As cabanas que o amor faz em nós" ainda nem lançado foi e já tem mais um no forno. Mas a ideia é essa mesma, lançar as edições novas desses dois livros juntinhas. Logo logo venho falar mais deles para vocês.
Colhendo as flores que a Ana derrama pelo meu caminho. Que alegria me deparar com palavras de um outro que me fazem entrar em contato com partes adormecidas de mim... Obrigada, Ana! ❤️🙏
Deus, o post me lembrou muitíssimo de Anais Nin: "We write to taste life twice, in the moment and in retrospect". Maravilha! Me identifiquei no ler Clarice como analogia de alguém que caça conforto na Bíblia - em último, não um conforto, mas uma ponta solta sequer, porque o desconforto que normalmente nos faz escrever... ou é um achismo. Obrigada!