Fui comer esfirras ontem com alguns colegas e cheguei quando a galera já tinha feito o pedido do que comer. Logo em seguida, o garçom colocou em cima da mesa uma bandeja com várias esfirras apetitosas: de queijo, carne e frango. A amiga que havia pedido, disse “gente, não é só pra mim, eu pedi pra mesa comer, tá? Então, podem ficar à vontade”! Enquanto alguns começaram a se servir, o garçom se intrometeu na nossa conversinha, dizendo “então, ninguém pode comer!” as pessoas pararam, sem entender e eu completei “só a mesa”! Quase ninguém riu, mas eu e ele, sim.
Na verdade eu achei muita graça daquilo.
A psicanálise e a literatura causam um efeito em comum em quem se envolve com elas, que é causar um certo descolamento em relação à linguagem. Se você já leu Manoel de Barros, por exemplo, sabe muito bem disso. A maneira como ele brinca com as palavras é realmente fantástica!
Leiam isso. Mas leiam em voz alta!
“Tratado geral das grandezas do ínfimo
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
É muito bonito como em suas mãos, as palavras parecem ganhar um vida que não é aquela que a gente usa para comunicar as coisas, meramente.
Bastava que a gente entendesse que era para todo mundo comer as esfirras e pronto, estava dado o recado da minha colega. E se o garçom não tivesse uma relação muito refinada com a linguagem, o comentário sobre ninguém poder comer, seria seríssimo! Mas se situar na linguagem em uma lugar de equívoco, é assumir que as mesmas palavras podem significar uma coisa e podem significar outra coisa ao mesmo tempo. As piadas, a poesia, as intervenções analíticas residem aí.
E isso é muito interessante, não é?
Lacan tem um texto super cabeçudo, que se chama “O aturdito”, onde ele escreve assim: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”. Quando a gente lê isso uma, duas ou até três vezes, não entende.
Mas o garçom ensina a ouvir/ler diferente, assim como Manoel de Barros ensina, assim como aprendemos com nosso inconsciente em análise. Ao querer comunicar que todos podem comer as esfirras, minha amiga diz que é a mesa quem deve comer as esfirras, o que gera um efeito de graça, já que mesas não comem. Mas é impossível transmitir o efeito de humor que surtiu ali na hora porque quando a gente explica uma piada, o duplo sentido dela desaparece!
Eu diria que explicar uma piada é tentar colocá-la toda no registro imaginário. Fazer uma piada é contar com o registro simbólico. O riso, que é aquilo que o nosso corpo faz um tanto por conta própria e que não é possível de transmitir, nos mostra que há algo que escapa ao imaginário e ao simbólico, que é o registro do real.
Vocês me desculpem o lacanês dessa news de hoje, mas é que às vezes é mais forte do que eu.
Para quem quiser continuar essa conversa sobre psicanálise e poesia, convido vocês para participar da imersão no livro “As cabanas que o amor faz em nós”. A convite da Buriti eu e o Pedro Heliodoro Tavares (que é o tradutor do Freud pela editora Autêntica) vamos fazer 3 encontros para falar disso e relacionar com meu livro roxinho nas próximas 3 quartas-feiras. Os encontros serão à noite pelo Zoom e as inscrições estão abertas!
Segunda-feira, dia 27 de janeiro, abriremos as inscrições para o “Lendo Freud hoje”, o grupo de estudos que coordeno para estudar Freud! Mando o link para vocês na semana que vem, tá? Vamos estudar de fevereiro a junho o livro do Freud “Fundamentos da clínica psicanalítica”. Os encontros acontecem às segundas (não-todas) pelo Zoom, das 18h às 20h.
Bom final de semana, pessoal.
Obrigada por lerem os devaneios de uma analisante/analista que é apenas uma pessoa comum (quem sabe um dia me torno imbecil, como Manoel de Barros).
Muito lindo Manoel de Barros em Lacanês...e Lacan em Manoelismos 😍
Sorri aqui com seu texto, Ana. Fiquei imaginando a cena de você e o garçom rindo, os demais com cara de interrogação e a mesa estática e em “estado de contentamento”!! Muito divertido! 🤣